Arquivo

Posts Tagged ‘Jorge Amado’

SINHÁ OLYMPIA

Olympia Cotta.

Neta do Marquês do Paraná, Olympia Angélica de Almeida Cotta, a Sinhá Olympia, nasceu em 1888 na Fazenda Catapreta, em Santa Rita Durão. Moça de boa família, sua casa pertencera ao poeta Frei José de Santa Rita Durão, autor de Caramuru. Gostava de ler, escrevia poesias, tocava piano, falava latim, tinha uma bela voz. Chegou a ser professora. Linda quando jovem, ela era cortejada pelos rapazes da região: “Todos queriam dançar comigo. Sabe o que aconteceu? A escolha era tão difícil, os rapazes eram tão bonitos, que eu acabei não casando com nenhum.”

Olympia era lésbica, provavelmente, numa época em que isso era impossível no Brasil, em Minas Gerais, em Santa Rita Durão. Ela criou então para si uma lenda romântica. Nobre apaixonada pelo farmacêutico pobre da cidade, Olympia teria sucumbido à tirania do pai, Coronel Gomes de Almeida Cotta. Ele a proibira de casar-se com o republicano, pois a irmã mais velha (na família de dezesseis filhos) tinha sofrido demais nas mãos do marido. Depois da morte do pai, Olympia encontrou um baú cheio de cartas que o amado lhe havia escrito. Seu pai as escondera para fazê-la acreditar que o rapaz não a amava. O jovem morreu logo depois de tristeza. A mãe dele vingou-se enviando a Olympia um abacate envenenado.

Em outra versão, narrada por Olympia, foi o farmacêutico que, frustrado em seu desejo, vingou-se dela presenteando-a com o tal abacate: “Era um pretendente por demais belo. Me deu um abacate, um dia. Não poderia me ter e me deu um abacate. Um abacate amargo. Ó, ainda sinto seu fel na boca até hoje.”  Foi por volta de 1918. Depois de comer o abacate envenenado, entrou em depressão e caiu numa letargia silenciosa. Ficava à janela a chorar. Ou falava sozinha, murmurando histórias sem sentido. Em 1929, mudou-se para Ouro Preto com a família. Passava o tempo visitando parentes, mas estes, cansados das visitas, começaram a evitá-la. Olympia pôs-se a perambular.

Passava dos cinquenta anos quando se tornou mendiga andarilha. Sinhá Olympia era agora uma força da Natureza. Os parentes ficavam escandalizados. Empobrecida, a família esforçava-se por manter as aparências de um passado glorioso. Excluída da sociedade, Olympia foi discriminada, mas tornou-se querida dos estudantes e dos turistas que visitavam Ouro Preto. Todos os dias, ela caminhava até a Praça Tiradentes para pedir ajuda aos visitantes. Vivia da caridade alheia. As esmolas que lhe sobravam, ela as repassava aos mais pobres.

Se alguém não tivesse dinheiro ou comida para dar, Olympia pedia um chapéu e um gole de pinga (em sua casa hoje funciona a Cachaçaria Milagre de Minas). Ela acumulou, assim, uma enorme coleção de chapéus de todo o mundo, que usava em combinações exóticas e coloridas, num magnífico amontoado barroco de roupas e acessórios: além dos chapéus malucos, uma cesta de trapos e tiras coloridas, roupas do século XVIII, saias por cima de saias, maquiagem carregada, unhas vermelhas, xales de tricô, cigarro na boca, cabo de vassoura que virou bambu e, por fim, cajados bonitos, torneados, decorados com flores, penas, papel de bala, papel crepom, santinhos, pacotes vazios de cigarro, fotografias, broches.

Lançava frases irônicas aos que a encaravam. Vivia em outros séculos. Sim, conhecera Tiradentes. Era parente de Dom Pedro I, de D. Pedro II, do Marquês do Paraná. Fora amiga da Princesa Isabel, do alferes Joaquim José. Inspirara um amor infeliz no poeta revolucionário Cláudio Manoel da Costa. Continuava a cruzar, nas ruas de Ouro Preto, com os fantasmas dos Inconfidentes. Fora mesmo uma princesa, até ser coroada imperatriz do Brasil, quando alforriou seus escravos e se tornou amante de Chico Rei. Reescrevia a História para inscrever-se como a figura central do enredo. Sinhá Olympia era uma força do passado.

Transportada para o século XX, Sinhá Olympia conheceu Vinícius de Morais, Tancredo Neves, Juscelino Kubitschek, que ela considerou o último de seus amores: “Meu último homem foi Juscelino. Era meu noivo, mas nunca dei esperanças. Vinha aqui em casa me cortejar, mas amores e abacates nunca mais.” Não o chamava de Kubitschek, mas de Kabitschek, porque “ku” soava mal, o povo punha maldade, embora fosse “pescoço” em francês. Cartões e presentes do mundo inteiro chegavam a Sinhá Olympia pelos correios: chapéus do mercado das pulgas de Paris, medalhas de Londres, moedas de várias partes do mundo.

Ela era tão importante! Só não conseguia enganar as crianças. Crianças sabem de tudo, e costumam ser cruéis e medonhas. Especialmente os meninos. Eles zombavam de sua voz grossa, de suas feições masculinas e chamavam-na de “homem” (hoje, ainda mais medonhos e cruéis, a chamariam de “sapatão”). Enfurecida, ela revelava seu ódio em gestos indecentes, lançando palavrões terríveis. Por fim, para provar que não era “homem”, levantava a saia e mostrava a vagina, pois sob o amontoado de roupas ela não usava nada.

Sinhá Olympia chegou a participar do “Programa do Chacrinha”. Foi capa da revista Times. Posou em fotos com Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, quando estes visitaram Ouro Preto em 1959 – essas e outras imagens incríveis dos filósofos franceses no Brasil integram o acervo da Casa Jorge Amado, em Salvador. A louca santa foi ainda cantada por Carlos Drummond de Andrade. Ganhou homenagens de Toninho Horta, Fernando Gabeira, Milton Nascimento. Rita Lee considerou-a “a primeira hippie do Brasil”.

Jean-Paul Sartre, Sinhá Olympia e Simone de Beauvoir.

Depois de 1970, cansada, deixou de subir as ladeiras de Ouro Preto até a Praça Tiradentes e ficava apenas sentada à porta de sua casa. Em 1971, Luiz Alberto Sartori Inchausti [1] registrou em filme [2] essa mendiga barroca que é a nossa Miss Havisham, a nossa Louca de Chaillot. No curta-metragem D. Olímpia de Ouro Preto, é ela mesma quem fala do “destino maldito” que a levou para Ouro Preto:

Ah meus meninos, vocês são novos e não sabem o sofrimento que passei. Fui obrigada a fazer promessa de pedir esmolas, sair mendigando para socorrer aos pobres e também valer a minha pessoa. Eu fiquei sem coisa alguma. Agora, imagina você meu filho, que martírio, sem o povo saber por que ando mendigando, porque que eu ando como uma mendiga, no meio da rua, pedindo… E ganho tudo, e protejo a quem não tem. Com a graça de Deus.

Uma cópia arruinada do filme foi postada no site da CLINICAPS; pode-se ouvir a trilha sonora, mas as imagens são meros borrões. A película está conservada no Acervo Arquivo Publico Mineiro, em cujo site se pode ver um trecho, replicado no YouTube. É uma relíquia que precisaria ser restaurada:

Na Igreja Nossa Senhora do Pilar, Sinhá Olympia acompanhava as missas e, às vezes, se punha a cantar muito alto ou fora de hora, recebendo, então, pitos do Padre Simões. Mas ela o respeitava. E ele esteve ao seu lado nos últimos dias de vida. Olympia morreu em 1976, aos 87 anos, de arteriosclerose. Foi sepultada no cemitério da Igreja de São José. Padre Simões encontrou depois, sob a cama de Olympia, notas e mais notas de dinheiro, dos mais diferentes países: “Ela não precisava disso, mas adorava pedir dinheiro aos turistas”.

Sinhá Olympia tornou-se um mito mineiro. Os defensores da Reforma Psiquiátrica encontram nela uma pioneira a sair do hospício para encontrar seu lugar na cidade, provando ser possível a circulação social do louco. Sua figura deu nome à Escola de Samba Sinhá Olympia de Saramenha e inspirou o samba-enredo da Mangueira, “E deu a louca no barroco” (1990):

Viveu

Em Vila Rica a Cinderela

Entre sonhos e quimeras

De raríssimo esplendor

Brilhou

Como o sol da primavera

E a beleza de uma flor

E assim | bis

Imperando nos salões

Em seu doce delírio

Conquistou corações

Acalentou o ideal da liberdade

E transformou toda mentira

Na mais fiel realidade

Vai…

Contar a história do infinito

Vai…

Não haverá amanhecer

Vai dizer que foi esculturada

Que sofreu por amor

E foi amada

Musa inspiradora

Luz de uma canção

Bailando na imensidão

Sinhá Olympia

Quem é você

Sou amor sou esperança

Sou Mangueira até morrer.

Mais recentemente, Valfredo Garcia encarnou-a em vídeos performáticos.  O artista plástico Zé Nelson fez seu retrato. O Grupo Teatro Andante contou sua vida na peça Olympia (2001) de Ângela Mourão, com direção de Marcelo Bones e texto da escritora Guiomar Grammont:

Chiquinho de Assis compôs uma bela sinfonia para essa Virgem Louca, gravada pela Orquestra Experimental da UFOP para o filme Brésil Baroque 2: Compositeurs d’hier et d’aujourd’hui (2005), do documentarista francês Luc Riolon:

E Edion Lima dedicou-lhe a canção “Olympia” (2010), gravada por Vicente Gomes, do Grupo Viola de Folia:

Diante da profusão de registros que se acumulam e que, com o tempo, só tendem a aumentar, numa replicação infinita de citações, homenagens, paródias e glosas, convém recordar a importância do cinema de arquivo: Dona Olímpia de Ouro Preto, de Sartori, permanece o único registro real de Sinhá Olympia. Mesmo com o nome da personagem errado no título, feito em condições precárias de filmagem, numa produção independente de baixíssimo orçamento, este filme é um documento histórico. Poderão ser produzidos muitos outros filmes a partir de fotografias e cenas desse filme, com boas verbas, reconstituições esmeradas, grandes atores vivendo a personagem, em imagens perfeitas, de colorido brilhante. Mas nenhum outro filme terá a Olympia real que apenas Sartori, e mais ninguém, registrou em película para a posteridade.

Fontes:

SINHÁ OLYMPIA: http://tccolympia.wordpress.com/

EM OURO PRETO: http://emouropreto.blogspot.com.br/2008/12/olmpia-cota.html


[1] Nascido em Ouro Preto em 1947, Luiz Alberto Sartori Inchausti graduou-se em Engenharia pela UFMG e fez pós-graduação em urbanismo pela mesma escola. Realizou os curtas-metragens: A festa (1967), Prêmio de Melhor Comunicação no III Festival de Cinema Amador JB-Mesbla 1967 e Prêmio de Melhor Fotografia no Festival Bandeirante de Cinema Experimental Latino-Americano 1968; Dona Olímpia de Ouro Preto (1971), Primeiro Prêmio no I Concurso Mineiro de Curta-Metragem, da CEC; Polícia, Crime dos Irmãos Piriás, Primeiro Prêmio no VII Concurso Mineiro de Curta-Metragem 1982 e Prêmio de Melhor Roteiro de curta-metragem no I Rio Cine Festival 1985; BH é a nossa cara (1988). Fonte: http://www.comartevirtual.com.br/lasartor.htm.

[2] D. Olímpia de Ouro Preto (Brasil, Belo Horizonte, 1971, 14’16’’, cor, doc, 35mm). Direção: Luiz Alberto Sartori Inchausti. Fotografia e câmera: Maurício Andrés, Ricardo Stein. Roteiro: Sartori, Geraldo Linares Filho. Música: Toninho Horta. Som: José Sette de Barros Filho, Ricardo Stein; Montagem: José Tavares Barros, Sartori. Produtor: Alfredo Antônio. Coprodutores: Maurício Andrés, Sartori. Equipe de produção: Flávio Ferreira, Antônio Maria de Oliveira, Jair Carvalho Junior.